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Aquém Tejo

Há quem do Tejo só veja o além porque é distância. Mas quem de Além Tejo almeja um sabor, uma fragrância, estando aquém ou além verseja, do Alentejo a substância.

Há quem do Tejo só veja o além porque é distância. Mas quem de Além Tejo almeja um sabor, uma fragrância, estando aquém ou além verseja, do Alentejo a substância.

Uma estória de escola de antigamente...

Nota Introdutória:

escola livros 4ª classe.jpg

Neste post nº 170, volto aos contos, ou estórias, como gosto de lhes chamar...

Estórias do arco-da-velha, assim eram nomeadas. Gostaria de as designar, agora, como "Estórias do Arco da Dona Augusta", parafraseando uma série de situações...

Esta é uma "estória" sobre aspetos de como era a Escola, antigamente.

Não há aqui qualquer saudosismo, nem qualquer constrangimento sobre essa "Escola de Outros Tempos".

São apenas vagas lembranças desses mesmos tempos.

Ocorreu-me divulgar este texto, também já escrito há alguns anos, hei-de ver quando, e que também ainda não fora publicado, inédito, portanto! 

Trazê-lo a lume, agora, que em breve irá começar novo ano letivo. Neste dia sete, de  Setembro, que na época era também a sete, mas de Outubro, que o ano letivo se iniciava. E, digamos, sem quaisquer artificialismos, chegava muito bem!

E tenho dito neste intróito. Faça favor de ler a estória e espero que goste.

 

 

Uma questão de orelhas

 

O Zé entrou na escola primária na década de sessenta, a sete de Outubro, data fixa da altura.

No primeiro dia de aulas a mãe foi levá-lo e, ao despedir-se, disse à professora:

- Senhora Professora, dele só quero uma orelha no final do ano!

 

Esta expressão fez-lhe muita confusão e ficou a matutar nela.

No dia anterior fora o pai que lhe dissera, à noite, após o jantar:

- Amanhã vais para a Escola. Olha que não quero aqui orelhas de burro em casa!

Para burros, aqui na rua, basta o burro do Mestre Paulo.

O dito burro conhecia ele. Toda a gente conhecia. Era tema do anedotário local.

Mas orelhas de burro?! Já ouvira contar, mas não sabia bem o que era.

Quanto a ficar só com uma orelha no final do ano, não se conformaria com tal.

Também nunca percebera muito bem o que isso significava: se, no final do ano, voltaria para casa só com uma orelha, mas mantendo tudo o resto, ou se dele restaria, no final do ano, apenas uma orelha, ficando o restante na escola.

 

Não tardou muito até saber o significado dessas expressões.

Mal começava a escola, também se iniciavam os famigerados trabalhos de casa.

No dia seguinte a serem marcados, logo no início da aula, a professora pedia os trabalhos de casa e todos colocavam os cadernos em cima da carteira.

A professora foi chamando os alunos um a um...

Após observar as contas, dar uma vista de olhos à cópia, punha um visto, guardando os cadernos, para ler as cópias mais tarde. Também prestava atenção ao asseio dos cadernos, alguns tão cheios de nódoas, de quem fazia os deveres na mesma mesa onde comia e enquanto comia... Também reparava para a limpeza da roupa.

 

Chegou a vez do Oliveira, da 2ª classe, mas já um corpanzil. Corpo grande alma de pau, dizia a avó.  Anda cá, Oliveira! Oliveeera! Gritava-lhe, quando ia para o campo da bola, um naco de pão, surripiado sem que a avó o visse escapulir para a brincadeira...

O Oliveira pegou no caderno, com aquela cara meio apalermada, sempre meio ausente das realidades... Andas sempre com a cabeça na bola! Parecia ouvir a avó.

Ao mostrar o caderno amarrotado, a professora torceu logo o nariz.

Então isto é caderno que se apresente?! E os trabalhos?

O Oliveira tentou abrir a boca, deglutiu a voz, fez-se vermelho e embatucou!...

No caderno estava iniciada uma cópia que não fora terminada, porque teve que ir marcar um golo na equipa do Saco, o bairro a que pertencia, contra a equipa do Terreiro, o outro bairro em que se dividia a aldeia: Terreiro – Saco, os dois rivais locais.

E os trabalhos?! Gritou a professora, atordoando os ouvidos do Oliveira...

Das contas apresentava apenas uma salganhada sem nexo, porque para a aritmética é que ele não dava mesmo nada e a tabuada ficara enredada nos passes mágicos dos adversários e nos gritos de gooollooo!!... do Sporting, que o Artur Agostinho ecoava na Emissora Nacional, aos domingos à tarde.

artur agostinho.jpg

O grito da professora chamou-o à realidade. Oliveira!!! O-li-vei-ra!... Sílabas e letras bem pronunciadas e sublinhadas. Queres ficar novamente de burro?! Ficas de castigo no intervalo, a fazer os trabalhos e agora vou mostrar-vos o que é ficar só com uma orelha!

 

Enfim, o Zé iria saber o que era isso. Ainda bem que não era a sua orelha!

A professora mandou o Oliveira sentar-se, começando a puxar-lhe uma das orelhas, sem deixar que ele se levantasse, pois com o braço esquerdo segurava-o na carteira, enquanto com a mão direita lhe puxava a respectiva orelha, que esticava, esticava... Era agora que ele ficava sem uma orelha, pensava o Zé e lá se cumpria a profecia da mãe, se calhar de todas as mães. Dele, só quero uma orelha no final!

Ainda bem que era o Oliveira, também a oliveira tem tantos ramos e folhas que, mais ramo menos folha, tanto faz. Ficava o Oliveira sem orelha e a oliveira sem folha.

Mas a professora acalmou e a orelha do Oliveira ficou a ganhar e, por enquanto ainda, no respectivo lugar, apesar de muito vermelha, cheio de dores o miúdo.

 

Quanto à segunda expressão orelhas de burro, só mais tarde, já próximo ao final do ano, haveria de saber o seu significado.

O Joaquim da Corneta andava na 4ª classe, sendo o mais velho da escola. Já repetira vários anos. Tinha este anexim, já de família, todos os irmãos o herdaram do pai, o ti Xico da Corneta, sendo que esta alcunha era quase um sobrenome.

À medida que se aproximavam os exames da quarta classe havia revisões de preparação, testando com provas escritas e orais os conhecimentos de cada um.

Quando chegou a vez do Joaquim a professora foi desesperando gradualmente.

Na leitura e interpretação do texto trocou alhos com bugalhos, nos problemas de Aritmética e Geometria derrapou ao comprimento e largura, estatelou-se na prova dos noves, porque já era velho, na História e Geografia trocou rios com serras, astros e linhas de caminho-de-ferro. Foi um desastre. O comboio descarrilou de vez.

Pensar em bater-lhe a professora pensou, mas achou que não valia a pena, não só por ser mais velho, como para tanta asneira não havia porrada que chegasse. Mas tinha que castigar, para dar o exemplo, para haver respeito. Vai daí usou a estratégia mais radical.

Enfiou-lhe na cabeça as ditas orelhas de burro, um círculo com duas grandes orelhas do dito animal e mandou-o colocar à janela, com a cabeça de fora, estando assim exposto todo o dia, sujeito aos ditos e dichotes dos passantes, que teciam comentários, uns divertidos, outros humilhantes ou toleirões, conforme quem lhos atirava à cara.

 

 

 Notas Finais.

Imagem de livros antigos da Escola, in: ciberjornal.wordpress.com.

Do saudoso Artur Agostinho in: restos decolecçao.blogspot.com e tesouroverde.blogspot.com.

Sobre "Orelhas de burro", busquem aqui e encontrarão imagens engraçadíssimas! 

(Posteriormente foi publicado em: Boletim Cultural do C. N. A. P.  Nº 125 - Ano XXVII - Nov. 2016.)

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