"Fado Português" – Régio – Amália
«III - FADO PORTUGUÊS
O fado nasceu num dia
Em que o vento mal bulia
E o céu o mar prolongava,
Na amurada dum veleiro,
No peito dum marinheiro
Que estando triste, cantava.
(- Saudades da terra firme,
Da terra onde o mar acabe,
Da casinha, e das mulheres,
Guitarra, vem assistir-me,
Que a gente é bruto e não sabe,
Expressa-as tu, se souberes…)
Por esse mar além fora,
A guitarra, dim…dom, chora,
Tem pausas, ais e soluços.
E tão bem faz isso à gente,
Que o triste bruto valente
Chora sobre ela de bruços!
(- Mãe, adeus! Adeus Maria!
Guarda bem no teu sentido
Que aqui te faço uma jura
Que ou te levo à sacristia,
Ou foi Deus que foi servido
Dar-me no mar sepultura!)
Por mar além, chão que treme,
O dim-dom da corda freme
De espanto, angústia, incerteza;
Mas reluz no olhar do triste
Não sei que alto apelo em riste
Contra essa humana fraqueza…
(- Que terra é esta…, este mar
Que só acaba nos céus,
Ou nem lá tem seu fim?...
Ou hei de o eu acabar,
Ou hei de, querendo Deus!,
Ou ele acabar a mim!)
Casada à trémula corda,
Sobe a voz trémula…, acorda
Tristezas do peito inteiro,
E as sereias que enlevadas
Se agarram às amuradas
Do frágil barco veleiro.
(- Ai que lindeza tamanha,
Meu chão, meu monte, meu vale,
De folhas, flores, frutas de ouro!
Vê se vês terras de Espanha,
Areias de Portugal,
Olhar ceguinho de choro…)
Deitando o olhar às lonjuras,
Só vê funduras, alturas
Das águas, dos céus, da bruma,
E as rijas pomas redondas,
De bico a boiar nas ondas,
Das sereias cor de espuma.
(- Sei eu, sequer, por que venho,
Deixando a jeira de chão
Que ao menos me não fugia,
Atrás de não sei que tenho
Tão dentro do coração
Que inté julguei que existia…?)
E à voz que sobe a tremer,
Morre lá longe…, e ao morrer,
Sobe outra vez, mais se aferra,
Que etéreo coro responde
De vozes que chegam de onde
Não seja nem mar nem terra!
(- Quem canta com voz tão benta
Que ou são os anjos nos céus
Ou é demónio a atentar?
Se é demónio, não me atenta,
Que a minh’alma é só de Deus,
O corpo, dou-o eu ao mar…)
Na boca do marinheiro
Do frágil barco veleiro,
Morrendo, a canção magoada
Diz o pungir dos desejos
Do lábio a queimar de beijos
Que beija o ar, e mais nada.
(- Mãe, adeus! Adeus, Maria!
Guarda bem no teu sentido
Que aqui te faço uma jura
Que ou te levo à sacristia,
Ou foi Deus que foi servido
Dar-me no mar sepultura!)
Sob o alvor da lua cheia,
Naquela noite, a sereia,
Cujo seio mais se enrista
Da aurora até ao sereno
Beijou o corpo moreno
Do moço nauta fadista…
(- Que terra é esta…, este mar
Que só acaba nos céus,
Ou nem lá tem seu fim?...
Ou hei de-o eu acabar,
Ou hei de, querendo Deus!,
Ou ele acabar a mim!)
Nas vias-lácteas faiscantes
Que esmigalhado em diamantes
O luar no mar espraia,
Um dim-dom…, dim-dom tremente,
Mais doces queixas de gente,
Vão ter a uma certa praia.
(- Ai que lindeza tamanha,
Meu chão, meu monte, meu vale,
De folhas, flores, frutas de ouro!
Vê se vês terras de Espanha,
Areias de Portugal,
Olhar ceguinho de choro…)
E as mães de filhos ausentes
Acordam batendo os dentes,
Torcendo as mãos, e carpindo,
Sabendo todas que é a morte
Que chega daquela sorte
No luar funéreo e lindo…
Ora eis que embora, outro dia,
Quando o vento nem bulia
E o céu o mar prolongava,
À proa doutro veleiro,
Velava outro marinheiro
Que estava triste e cantava.»
In.
RÉGIO, J. – FADO – Klássicos – A BELA E O MONSTRO, EDIÇÕES Lda. Lisboa – Portugal - 2011