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Aquém Tejo

Há quem do Tejo só veja o além porque é distância. Mas quem de Além Tejo almeja um sabor, uma fragrância, estando aquém ou além verseja, do Alentejo a substância.

Há quem do Tejo só veja o além porque é distância. Mas quem de Além Tejo almeja um sabor, uma fragrância, estando aquém ou além verseja, do Alentejo a substância.

Uma Carteira... de Notas

Apesar de toda a poeira levantada pelas montadas dos heróis da nossa praça, poeira para nos obnubilar a vista… apesar de todo o circo montado no terreiro… a menina Odete continua na sua, de trocar a nota de cinco por miúdos…nada de confusões, que já basta com a senhora marquesa. Entrementes, observa o que se passa no “Café Progresso”, do Srº Silva, cujo empregado é o srº Bento.

 

Capítulo V

 

Passadas que foram as cogitações, eis senão quando, esbaforida, alisando o cabelo com a mão direita, unhas pintadas de vermelho a realçar os anéis dourados, rosto maquilhado, seios bem lançados, ancas roliças, salientes na saia travada, deixando entrever a coxa, saltos altos… eis que chega, atropelando a conversa do empregado…

 

- Ó, srº Bento… peço desculpa por interromper… mas há pouco, quando vim tomar a bica, não deixei aqui a minha carteira?!

- Dona Cocas, não vi aqui carteira nenhuma… Ó Luís, tens para aí alguma carteira?

- Tenho, mas é minha, não ando por aí a gamar carteiras aos clientes.

- Ele diz que só tem a sua carteira…

 

- Só a minha?! Quer dizer que costuma ter mais carteiras, não? É um carteirista, está visto…

- Minha senhora, ele disse que só tem a carteira dele, não a sua.

- Mas, afinal a carteira é sua ou dele? Sua? Dele?

 

- Quem sua com esta conversa sou eu, que já suei as estopinhas toda a manhã a servir bicas aos clientes, um garoto para a Senhora Marquesa e agora uma carteira…a senhora aqui não deixou nada, exceto o dinheiro da bica, cuja dita levou, ou melhor, bebeu.

 

- Mas levei a qual dita?! Nem Dita, nem Tita, nem Zita. Não levei nada daqui e, se levei, levei, quero lá saber disso agora! Eu não levei daqui nada, eu fui mas é roubada. Se, por esquecimento, não deixei ficar aqui a carteira, então foi-me roubada. E só pode ter sido no autocarro. Tive que ir entregar umas cartas no correio, para o escritório, melhor dizendo, do escritório do meu patrão, para os clientes. Clientes dele, não meus, que não tenho clientes! – E foi aquele machão que entrou na paragem seguinte. Veio para o pé de mim e começou a encostar. Tão fino, tao cheiroso! E aquele bigode, vá lá a gente confiar. Encostava-se e sentia-me flutuar, nem parecia estar de pé no autocarro, julgava-me em transatlântico de luxo. Só pode ter sido ele. Enquanto encostava, aproveitou para pôr a mão na carteira. Tantos sítios que havia para meter a mão e foi logo à carteira! Não se pode confiar em ninguém. Alguma vez imaginaria?!... tão fino, tão cheiroso… vá lá a gente confiar.

 

Instintivamente, Odete levou a mão à carteira, à sua carteira, lembrando-se que ainda tinha a nota de cinco mil escudos, cinco contos, por destrocar. E outras coisas mais que não vêm ao caso e só a ela interessam ou eventualmente a quem nelas se possa interessar. Que ela, agora, não se interessa por nada mais que não seja a possível entrada na universidade.

Com toda esta confusão de rapazes morenos e louros, de títulos honoríficos, mestranças de cavalaria, de bicas e torneiras, de chulos e carteiras, a rapariga esquecera-se da nota, já não sabia se era do António Sérgio, se do Antero de Quental ou se de Outro Qualquer.

notas-de-5-mil-escudos-1995. forum-numismática.com

- Olhe, Senhor Benzido, faz-me o favor de destrocar o António Sérgio? Ou será o Antero de Quental?! Pensou.

 

antónio sérgio. forum-numismática.com

- Aproveite para se pagar desta torneira (bica), que tenho pressa de apanhar o transatlântico (autocarro) para ir à Feira. (Eram, nesta altura, quase treze horas.)

 

- E, milagre! O senhor Bento benzido pagou-se da bica e trouxe-lhe quatro Teófilos, um Mouzinho, quatro Pessoas, (estas eram as efigies de alguns dos nossos Ilustres, agora novamente desaparecidos) e ainda umas miudezas (uns fígados, umas moelas…) e mais uns trocados sem importância de maior.

 teófilo braga. forum-numismática.comteófilo braga. forum-numismática.comteófilo braga. forum-numismática.comteófilo braga. forum-numismática.com

mouzinho. forum - numismática.com
Pessoa - forum-numismática.comNOTAS: As imagens das notas de escudos in: forum - numismática.com  

 

Versões deste texto foram publicadas em:

Boletim Cultural Nº 62 do Círculo Nacional D’Arte e Poesia, Ano XIII, Nov. 2002.

Boletim Cultural Nº 68 do Círculo Nacional D’Arte e Poesia, Ano XV, Jun. 2004

Uma Questão de Títulos…

Depois da ótima notícia veiculada ontem nos orgãos de comunicação social, apenas ontem, que hoje já pouco se falará, as notícias positivas são rapidamente esquecidas...

Continuamos com a saga da menina Odete que, nesta historieta, se perde numa questão de títulos.

 

Capítulo IV

 

E acabou por entrar no Café do Srº Silva, mais conhecido como “Café Progresso”!

 

Na primeira mesa, a que dava para a montra, com algumas das iguarias servidas no estabelecimento, dispostas em prateleiras para visibilidade do exterior, na primeira mesa, dizia, estava uma senhora tipo marquesa das avenidas novas, quando as havia novas, que agora são todas velhas, tanto as avenidas como as marquesas e ambas em vias de extinção.

 

A senhora marquesa pedia, não muito alto, estava apenas sentada numa cadeira normal, não sobre a mesa, pedia a nobre senhora, numa voz audível e bem timbrada:

- Oh, senhor Bento, traga-me um garoto clarinho, por favor.

(Convém lembrar que a nobre senhora fizera este pedido na década de oitenta, ainda no século vinte, portanto, muito longe de imaginar todas as repercussões que viriam a ter estes pedidos de garotos no início do século vinte e um…)

 

- Minha Senhora, respondeu o senhor Bento, não acha que um garoto é demais para a sua idade?! Ainda se aguenta nas canelas? E ainda quer escolher… Clarinho, tem alguma coisa contra os escurinhos?! Não lhe é indiferente a cor, isto de um homem ser trigueiro não serve para toda a gente. E um garoto, com essa idade!... Vá à saída do liceu, talvez aí arranje garotos que lhe sirvam. Aqui não servem, nem se servem garotos. Não servem, pois somos contra o trabalho infantil e não se servem, porque é proibida a permanência a menores neste estabelecimento, não devidamente acompanhados por um adulto.

 

- Oh…! Oh!... Senhor Bento…Já se viu?! Perdeu o tino. Não tenho idade nem condição para sermões destes. Gaguejou, visivelmente embaraçada, a distinta senhora.

- Uma Senhora como eu, de boas famílias, viúva de um só marido, mestre de cavalaria. Alta cavalaria! (E pôs o senhor marido em cima do cavalo e num pedestal, tal qual Dom José.) Ouvir este despautério. Vou-me queixar ao gerente...

- Srº Silva, chegue aqui, por favor. – Imagine, o seu empregado, o srº Bento… patatá, pataté… patatu … e (re)compôs a conversa do empregado.

O senhor Silva ouvia, atento, mas incrédulo, perplexo, a conversa da senhora marquesa… (Na verdade, ela não era marquesa, mas nós damos-lhe esse título oficial, ela merece-o.)

 

- A Senhora quer mesmo um garoto?! Não lhe serve um mais velho? Eu, por exemplo. Estou em muito bom estado, tirando umas entradas e uns quantos cabelos brancos… Se quer clarinho, está bem, não vou para a praia este verão.

E o srº Silva já se via a não ir para a Caparica nas férias desse ano, indo passá-las à terra, na Beira Baixa, regressando em setembro, pronto a servir, com a sua elegância habitual, a Senhora Marquesa, viúva do senhor mestre de alta cavalaria, em cima de um pedestal.

E a senhora marquesa, ao lembrar-se da estória do tal garoto, não conseguia deixar de ver o dito cujo marido, que ela dizia ter sido mestre de alta cavalaria, devidamente composto, em cima do tal pedestal. Por mais que tentasse varrer da memória tal imagem abusiva da sua honorabilidade, lá estava ele, todo garboso e muito bem enfeitado, montado no seu cavalo alazão. A memória é realmente muito traiçoeira. Porque raio de carga d’água, não sei porque associação de ideias, há - de um mestre de alta cavalaria, estar com duas bandarilhas, se não é toureiro?! Ou será que era?

 

Só por ela pedir um garoto clarinho?! Sabendo nós que um garoto é uma bebida de café com um pouco de leite, servida em chávena de café ou café pingado de leite, apenas com um pouco mais de leite que o habitual, para ser clarinho.

 

Não fazemos a menor ideia, mas era assim qua a senhora o via!

 

Nota:

Uma versão deste texto foi publicada no Boletim Cultural Nº 73 do Círculo Nacional D'Arte e Poesia, Ano XVI, Julho 2005.

Água sem gás… H2O

E como, apesar de termos hoje mais um dia de chuva, um copo de água sabe sempre bem e refresca as ideias. E também não vamos colocar a rapariga, pois que de uma rapariga se trata, não a vamos colocar a pedir um copo de vinho!

Lembramos ainda que a ação decorrente da narrativa se situa num outro tempo, tanto cronológico como meteorológico. Por tudo isso segue:

 

Capítulo II

 

Saiu então ela, Odete, da Livraria, agitando a nota de cinco mil escudos, ainda por destrocar. Mas precisava urgentemente de dinheiro mais miúdo.

Pensou ir ao Café, tomar uma bebida, entregar a nota e assim eram obrigados a dar-lhe troco. Acabou por entrar na primeira Tasca da Esquina e dirigiu-se ao balcão, pedindo uma garrafa de agá, dois, ó, do Luso.

H 2 O. Foto de F.M.C.L.

- Menina, não sabe que o H não se lê?! E andam vocês a estudar, não sei para quê…

Não obtendo resposta, o taberneiro continuou:

- Então, porque o pronunciou?! Além do mais não percebo por que razão o Acordo Ortográfico não baniu completamente essa letra. Não faz falta nenhuma, só dá mais trabalho e gasta mais carga de esferográfica e tinta e ocupa espaço na folha. A menina quererá certamente… dois. Oh, tu que és do Luso, traz aí… Mas, menina, quer dois de quê?? Dois maços de tabaco, já se vê. Já fuma?! Tão novinha! Não sabe que o tabaco mata?! Mas, enfim, aqui tem dois maços de tabaco SG, já se vê, mais uns pregos para o seu caixão. Pagamento no ato de compra, do tabaco, não do caixão, que esse pode ser pago a prestações.

 

- Pagar com cinco mil escudos? Isto aqui não é nenhum antiquário. Parece que regressou você da Guerra dos Cem Anos, com tantos escudos. Cinco mil!!! Bem podia ter trazido uns euros, se vem lá dessas Europas… Além do mais, hoje em dia, na era das bombas e dos mísseis não há escudos que nos protejam, tal o arsenal de destruição que se acumula por esse mundo fora. E já ninguém quer os escudos, nem os espanhóis desde a Batalha de Aljubarrota, só mesmo Dom Quixote… agora é tudo em euros, ou dólares.

- Olhe, menina, não lhe vendo o tabaco, pois não tenho troco para tanto escudo. Ainda mal comecei o dia, não tenho quase nada na caixa.

 

Ela que assistira, impávida e serena, a todo este arrazoado de conversa, explodiu.

- Não, não tem nada na caixa, não! Nem na caixa nem no caixote. Tem a caixa dos pirolitos desregulada e o caixote todo desaparafusado. Seu caixote despregado!

E preparava-se para sair.

 

- Espere aí, menina, que também leva troco.

Voltou-se a rapariga, admirada por, de repente, o taberneiro já ter dinheiro na caixa para lhe dar troco, quando este lhe devolve o impropério figurado, atirando-lhe a água dum copo que enchia para um cliente que lhe pedira uma água sem gás.

- Toma lá um refresco para essas ideias tontas. Imagine-se pronunciar o agá. Onde já se viu?! Só mesmo para quem quer ofender um quase analfabeto como eu.

 

Com os cabelos escorrendo, realçando o cheiro a camomila do shampoo, xampô, sem h, ultra suave, que costumava usar, quedou-se um pouco, meditando sobre algumas questões de Química que a preocupavam. Se tivesse boa nota, nesta disciplina, melhorariam as hipóteses de entrar na Universidade. Oxalá saíssem muitos problemas, porque na Matemática estava ela bem. Ou não, H2O?!

 

 

Mais uma Nota!

Uma versão deste texto foi publicada no Boletim Cultural Nº 71, do Círculo Nacional D'Arte e Poesia, Ano XVI, Fev. 2005.

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