Há quem do Tejo só veja
o além porque é distância.
Mas quem de Além Tejo almeja
um sabor, uma fragrância,
estando aquém ou além verseja,
do Alentejo a substância.
Há quem do Tejo só veja
o além porque é distância.
Mas quem de Além Tejo almeja
um sabor, uma fragrância,
estando aquém ou além verseja,
do Alentejo a substância.
As escritas nos blogues têm andado muito bloqueadas. Dado o contexto, poderíamos dizer "blogueadas"!
Questões de natureza pessoal, outras de ordem logística e técnica.
Também temáticas...
A guerra, esta guerra absurda, atroz, atormenta-nos. Não se vislumbra um final próximo. Como, Quando, ...conseguirão, ... Quem conseguirá... parar aquela figura inominável, aquele personagem execrável e seus sequazes, que desencadearam tal guerra e invasão de país soberano?! Que, por nenhumas razões plausíveis, lógicas, têm destruído todo um território, massacrado todo um povo inocente!? Que, permanentemente, ameaçam fazer ainda pior! Gente(?!) em que não se vislumbra um olhar, um sorriso, um sinal de Humanidade!
Livro de Lénia Rufino, romance, 1ª edição – Manuscrito - Lisboa – Março 2021
O título reporta-nos para um dos locais que temos mais certos na nossa Vida. As árvores, como dedos apontando para o céu, são marcantes e identitárias do espaço, pelo menos em Portugal.
Nas imagens elucidativas, ilustrando o postal, não tendo nenhuma foto específica, optei por utilizar fotos de cedros, plantas que eu próprio semeei e plantei no Chão e no Vale. Para aí nos anos noventa. (Mas, com estes particulares, estou-me desviando do essencial.)
A ação da narrativa decorre no Alentejo Norte, em duas pequenas povoações, uma mais um lugarejo, outra, um pouco maior. Nos anos de 1992, tempo presente na narrativa e 1968, tempo pretérito.
As personagens principais?
Isabel, jovem estudante de dezoito anos, inquiridora, pesquisadora, “perguntadeira”, querendo obter respostas sobre pessoas da localidade, já falecidas, nomeadamente sobre as respetivas mortes, que a intrigavam sobremaneira. (Esta personagem funciona, de certo modo, como alter-ego da Escritora?)
A mãe de Isabel, Lurdes, alvo primordial das perguntas da filha. Ela será mesmo a personagem principal. Ao não responder, ou fazê-lo por evasivas, ou desviar o assunto e o rumo da conversa, só aumentava a curiosidade e o interesse de Isabel.
Esta sua curiosidade e perspicácia policial levaram-na a equacionar a possibilidade da mãe, Lurdes, ter um diário. Daí a procurá-lo, foi um ápice.
Encontrá-lo-ia no sótão da casa, entre papéis velhos e fotos.
E a partir da respetiva leitura, clandestina, todo um desenrolar de um ou diversos novelos sobre a vida da mãe, enquanto jovem e o seu modo de ser e de estar como adulta, vieram à superfície e conhecimento de Isabel. E também possíveis respostas ou pelo menos suposições, para as mortes inexplicáveis de algumas pessoas da localidade e que tanto intrigavam a jovem.
Nós, enquanto leitores, somos levados nesta inquietação de Isabel e, com ela, queremos também descortinar e esclarecer os segredos que aquele diário revela e os mistérios que pairam sobre mortes e vidas de algumas pessoas das localidades.
Outro personagem, também crucial no desenrolar do enredo, é Monsenhor Alípio: pároco nas duas localidades, cujos nomes desconhecemos. Primeiramente, na localidade mais lugarejo, nos anos sessenta, onde Lurdes nascera e vivera na infância e na primeira adolescência. E nos anos noventa, na segunda localidade, onde decorre a narrativa no tempo presente, onde passou a viver Lurdes a partir dos catorze anos, onde casou e lhe nasceram as duas filhas, Isabel, a mais nova e Luísa, a mais velha.
Ele, personagem enigmática e de poder, em ambas as aldeias, funciona como contraponto de toda a vida de Lurdes e do desenrolar da ação e enredo.
(Não vou contar a história, que não sou escritor, nem narrador.)
Mas, digo ainda, que Lurdes teve outro filho resultado de uma violação aos catorze anos. Violação, crime, a que Monsenhor assistiu, mas não interveio. Esse filho foi-lhe retirado por Monsenhor, que o enviou a criar por uma irmã, para os lados de Viseu. Mais velho que as duas meias-irmãs, estudará no Porto.
Este livro lê-se com muitíssimo agrado, envolve-nos na narrativa e queremos obter respostas para as dúvidas e questões da jovem.
Um livro nos moldes tão atuais: funcionará como uma saga. Digo eu, que não falei com a Escritora.
Surgirá outro volume, assim espero. E, nele, Isabel procurará encontrar o irmão, chamado João, em homenagem a João Tordo, mentor da escritora Lénia. É ela que o diz, nos “Agradecimentos”.
Porque se abatem as árvores, à beira das estradas?
Perguntou, inocente (ou atrevida?) a criança.
Porque impedem o alargamento das estradas.
Respondeu, categórico, o Presidente da Junta.
Porque os automobilistas nelas esbarram, esmagando os seus automóveis e as suas carolas nos troncos obtusos das árvores, que estacionam nos dois sentidos, não respeitando as regras de trânsito.
Sentenciou, sabedor, o Autarca Diligente.
Então… e a sombra? E o oxigénio?
E para que serve a sombra à beira das estradas?
Já ninguém anda a pé nem de carroça.
E temos toldos e guarda-sóis. Que há muitos no Hipermercado.
E o oxigénio compra-se em garrafas, não tarda muito.
E temos o ar condicionado!
Para que queremos árvores e natureza, se no meu Supermercado temos de tudo e é a verdadeira natureza?!
Para que precisamos de árvores, se temos tantas de plástico, perenes, sem folhas caindo, à venda no Hiper?!
Se temos tantas árvores empalhadas prontas a serem compradas para o Natal?!
Atalhou, solícito, o Dono de Uma Cadeia de Supermercados.
E as chatices que nos dão as árvores…
São as folhas que caem no Outono e voam por todo o lado.
E os ramos que têm que ser podados no Inverno…
E na Primavera enchem-se de flores e causam-nos alergias. Para depois murcharem e caírem…
E têm que ser regadas no Verão. E os frutos têm que ser colhidos, Quando há tantos na frutaria, À mão de semear…!
E trazem-nos mosquitos. E os pássaros. E os seus dejetos!
Acrescentou, pragmático, o Senhor Senso Comum.
E quando eu fizer anos, em Dezembro, e chegarem as cegonhas?
Que vão elas dizer das suas casas devassadas?!
Atreveu-se, ainda, a perguntar, impertinente, a criança.
O tempo das cegonhas já passou. Ou ainda acreditas nas cegonhas?
Pouco importa quando chegam. Nem como! Nem onde!
O tempo agora é digital. Mede-se nos écrans gigantes plantados nas bermas das vias rápidas, nos painéis publicitários anunciando o Novo Detergente. (Em vez das árvores que distraem os homens com os seus ramos a baloiçarem ao vento.)
Não há tempo, nem tempos, cronológico ou meteorológico que nos interessem. Não há Fim dos Tempos, que o Tempo é Eterno e Efémero.
Rematou, convincente, o Político Instalado no Poder.
E, a criança,
Perante tamanhas Sabedorias, calou-se.
Mas doeu-lhe muito ver tantos troncos de árvores
Cortados às rodelas, nas bermas das estradas!
E… Quando chegarem as cegonhas?
Que vão elas dizer…?!
Estas perguntas ficaram ecoando, em ressonância,
Na mente da criança.
Notas:
Escrito em Portalegre, Set. 2000.
Publicado no Boletim Cultural Nº 58, do Círculo Nacional D’Arte e Poesia, Dez. 2000
E vamos continuar com as “estórias que parecem mentiras”, finalizando com o capítulo VI. Lembramos que foram escritas na década de oitenta do século XX e qualquer semelhança com a realidade será pura coincidência. São estórias de um absoluto “nonsense”.
Capítulo VI
Mal chegou à feira, apercebeu-se que reinava grande confusão no arraial.
- Gatuna, ladrona!... Ladra, ladra… ladra…
- Mesmo agora aqui cheguei e já me chamam ladra?! Questionou-se Odete. Com tantos ladrões que por aí andam à solta, logo a mim é que me havia de calhar…
Mas não! O coro de vozes que ecoava das feirantes dirigia-se a uma mulher de tez clara, cabelo aloirado, magra, alta, vestida de forma discreta. Misturava-se com a vozearia das vendedeiras de vestuário, de toda a espécie, imitações ou restos defeituosos das marcas da moda, de calçado e bijuterias; pregões dos vendedores de fruta e artesanato, mercadores de queijos e enchidos…
A mulher de meia-idade, enxuta, sem pinga de sangue nas faces, mal falando, estava rodeada dum pequeno grupo de velhas, trajadas de negro, quais bruxas de Goya, todas iguais na acusação e de um vendedor, pança proeminente, bigodaças, também de dedo em riste e gestos teatrais.
- Ela não pagou, não pagou!.. Gritavam as velhas, gesticulando muito, misturando a gritaria histérica, com impropérios, blasfémias, fazendo grande alarido e apontando para a ré e já condenada, no meio delas.
- Então, não paguei?! Ripostava encolhida, a mulher. – Paguei sim, paguei a este senhor. Dois contos. (Seriam agora dez euros.)
- Não pagou nada! Disse o bigodaças, enquanto lhe tirava do cesto, a blusa que ela levava.
- Ladra, ladra… ladra… repercutiu-se a algazarra pela feira.
A mulher, tremendo, deixou que lhe tirassem o artigo e a enxovalhassem em público. Continuou a tremer, cada vez mais, parecia ir entrar em convulsão.
E tantos a mandaram ladrar, com gritos de todo o lado, que ouviu-se mesmo ladrar. Primeiro aparentava uma cadelinha mansa…béu, béu… enquanto fazia os movimentos com a cabeça e o corpo e as mãos e a coluna iam assumindo uma certa horizontalidade.
Tornou-se mais interessante o ajuntamento. Muitos começaram a rir, a chafurdar com as palavras, a atiçar. Algumas até largaram as bancas para presenciarem melhor o espetáculo.
Mas o latido manso foi desaparecendo, substituído por um ladrar forte, acompanhado de rosnar e grunhidos: ão, ão, ão, grruumm, grruuummm… enquanto o corpo assumia claramente a posição horizontal, mãos assentes no chão, movendo a cabeça disforme, para todos os lados. As vestes rasgaram-se e no corpo nasciam pêlos, sempre mais eriçados e unhas grandes nas patas. Da boca espumava saliva avermelhada e os dentes caninos, presas bem salientes, arreganhavam-se para as pessoas, sobre as quais se lançava.
Estas, do espanto e risadas iniciais, passaram ao medo, ao medo visceral, ao medo ancestral dos lobos e lobisomens.
Já debandavam pela Praça, saltando e derrubando bancadas, que as vendedoras procuravam recolher e fugir, aterrorizadas, pelo monstro que ali surgira: uma cadela enfeitiçada, cada vez mais eriçada e feroz.
Crianças choravam em altos berros, mães aflitas agarravam-nas pela cintura, umas tropeçavam e caíam, sobre estas pessoas passavam, tomates misturavam-se com cruzetas, estas com sapatos, no meio de calças e camisolas, cestos de vime e plásticos com couves e alfaces.
E, no espaço do que fora o mercado, subitamente livre de gente, que se afastara para a periferia, uma salganhada de objetos… uma barafunda de artigos de todo o género… bancas e cadeiras, frutas e hortaliças.
No meio estava a mulher, enxuta de faces e seca de carnes, branca de natureza e alva da convulsão, espantada, olhando toda aquela confusão, como se houvera um tsunami, aquele alarido subitamente desfeito, toda a babel de objetos desconectados em seu redor.
Também muda de espanto, Odete, especada, não sabia o que dizer.
- O que se passou com esta gente toda?! Enlouqueceram de repente?!... Picou-lhes a mosca? E sacudiu um mosquito que a picara, enquanto fazia estas perguntas, dirigindo-se à senhora que também não soube responder-lhe.
Desceram ambas a Avenida. A senhora apanhou um táxi, Odete o autocarro, de regresso, ainda incrédula sobre o que os seus olhos haviam presenciado.
Entretanto, as pessoas foram regressando à Praça, pouco a pouco, refazendo-se do susto ou alucinação coletiva.
Odete questionava-se sobre quem teria razão. Onde estaria o ladrão ou ladrona? Quem teria roubado? E que alucinação fora aquela? E o que teria ela ido fazer à feira, se não comprara nada e já destrocara a nota?!
Serão cenas de próximas estórias?
Quem sabe, num futuro já sem escudos nem contos, mas com euros?!
Nota:
Uma versão deste texto foi publicada no Boletim Cultural Nº 78, do Círculo Nacional D’Arte e Poesia, ano XVII, Junho 2006.
Apesar de toda a poeira levantada pelas montadas dos heróis da nossa praça, poeira para nos obnubilar a vista… apesar de todo o circo montado no terreiro… a menina Odete continua na sua, de trocar a nota de cinco por miúdos…nada de confusões, que já basta com a senhora marquesa. Entrementes, observa o que se passa no “Café Progresso”, do Srº Silva, cujo empregado é o srº Bento.
Capítulo V
Passadas que foram as cogitações, eis senão quando, esbaforida, alisando o cabelo com a mão direita, unhas pintadas de vermelho a realçar os anéis dourados, rosto maquilhado, seios bem lançados, ancas roliças, salientes na saia travada, deixando entrever a coxa, saltos altos… eis que chega, atropelando a conversa do empregado…
- Ó, srº Bento… peço desculpa por interromper… mas há pouco, quando vim tomar a bica, não deixei aqui a minha carteira?!
- Dona Cocas, não vi aqui carteira nenhuma… Ó Luís, tens para aí alguma carteira?
- Tenho, mas é minha, não ando por aí a gamar carteiras aos clientes.
- Ele diz que só tem a sua carteira…
- Só a minha?! Quer dizer que costuma ter mais carteiras, não? É um carteirista, está visto…
- Minha senhora, ele disse que só tem a carteira dele, não a sua.
- Mas, afinal a carteira é sua ou dele? Sua? Dele?
- Quem sua com esta conversa sou eu, que já suei as estopinhas toda a manhã a servir bicas aos clientes, um garoto para a Senhora Marquesa e agora uma carteira…a senhora aqui não deixou nada, exceto o dinheiro da bica, cuja dita levou, ou melhor, bebeu.
- Mas levei a qual dita?! Nem Dita, nem Tita, nem Zita. Não levei nada daqui e, se levei, levei, quero lá saber disso agora! Eu não levei daqui nada, eu fui mas é roubada. Se, por esquecimento, não deixei ficar aqui a carteira, então foi-me roubada. E só pode ter sido no autocarro. Tive que ir entregar umas cartas no correio, para o escritório, melhor dizendo, do escritório do meu patrão, para os clientes. Clientes dele, não meus, que não tenho clientes! – E foi aquele machão que entrou na paragem seguinte. Veio para o pé de mim e começou a encostar. Tão fino, tao cheiroso! E aquele bigode, vá lá a gente confiar. Encostava-se e sentia-me flutuar, nem parecia estar de pé no autocarro, julgava-me em transatlântico de luxo. Só pode ter sido ele. Enquanto encostava, aproveitou para pôr a mão na carteira. Tantos sítios que havia para meter a mão e foi logo à carteira! Não se pode confiar em ninguém. Alguma vez imaginaria?!... tão fino, tão cheiroso… vá lá a gente confiar.
Instintivamente, Odete levou a mão à carteira, à sua carteira, lembrando-se que ainda tinha a nota de cinco mil escudos, cinco contos, por destrocar. E outras coisas mais que não vêm ao caso e só a ela interessam ou eventualmente a quem nelas se possa interessar. Que ela, agora, não se interessa por nada mais que não seja a possível entrada na universidade.
Com toda esta confusão de rapazes morenos e louros, de títulos honoríficos, mestranças de cavalaria, de bicas e torneiras, de chulos e carteiras, a rapariga esquecera-se da nota, já não sabia se era do António Sérgio, se do Antero de Quental ou se de Outro Qualquer.
- Olhe, Senhor Benzido, faz-me o favor de destrocar o António Sérgio? Ou será o Antero de Quental?! Pensou.
- Aproveite para se pagar desta torneira (bica), que tenho pressa de apanhar o transatlântico (autocarro) para ir à Feira. (Eram, nesta altura, quase treze horas.)
- E, milagre! O senhor Bento benzido pagou-se da bica e trouxe-lhe quatro Teófilos, um Mouzinho, quatro Pessoas, (estas eram as efigies de alguns dos nossos Ilustres, agora novamente desaparecidos) e ainda umas miudezas (uns fígados, umas moelas…) e mais uns trocados sem importância de maior.
NOTAS: As imagens das notas de escudos in: forum - numismática.com
Versões deste texto foram publicadas em:
Boletim Cultural Nº 62 do Círculo Nacional D’Arte e Poesia, Ano XIII, Nov. 2002.
Boletim Cultural Nº 68 do Círculo Nacional D’Arte e Poesia, Ano XV, Jun. 2004
Depois da ótima notícia veiculada ontem nos orgãos de comunicação social, apenas ontem, que hoje já pouco se falará, as notícias positivas são rapidamente esquecidas...
Continuamos com a saga da menina Odete que, nesta historieta, se perde numa questão de títulos.
Capítulo IV
E acabou por entrar no Café do Srº Silva, mais conhecido como “Café Progresso”!
Na primeira mesa, a que dava para a montra, com algumas das iguarias servidas no estabelecimento, dispostas em prateleiras para visibilidade do exterior, na primeira mesa, dizia, estava uma senhora tipo marquesa das avenidas novas, quando as havia novas, que agora são todas velhas, tanto as avenidas como as marquesas e ambas em vias de extinção.
A senhora marquesa pedia, não muito alto, estava apenas sentada numa cadeira normal, não sobre a mesa, pedia a nobre senhora, numa voz audível e bem timbrada:
- Oh, senhor Bento, traga-me um garoto clarinho, por favor.
(Convém lembrar que a nobre senhora fizera este pedido na década de oitenta, ainda no século vinte, portanto, muito longe de imaginar todas as repercussões que viriam a ter estes pedidos de garotos no início do século vinte e um…)
- Minha Senhora, respondeu o senhor Bento, não acha que um garoto é demais para a sua idade?! Ainda se aguenta nas canelas? E ainda quer escolher… Clarinho, tem alguma coisa contra os escurinhos?! Não lhe é indiferente a cor, isto de um homem ser trigueiro não serve para toda a gente. E um garoto, com essa idade!... Vá à saída do liceu, talvez aí arranje garotos que lhe sirvam. Aqui não servem, nem se servem garotos. Não servem, pois somos contra o trabalho infantil e não se servem, porque é proibida a permanência a menores neste estabelecimento, não devidamente acompanhados por um adulto.
- Oh…! Oh!... Senhor Bento…Já se viu?! Perdeu o tino. Não tenho idade nem condição para sermões destes. Gaguejou, visivelmente embaraçada, a distinta senhora.
- Uma Senhora como eu, de boas famílias, viúva de um só marido, mestre de cavalaria. Alta cavalaria! (E pôs o senhor marido em cima do cavalo e num pedestal, tal qual Dom José.) Ouvir este despautério. Vou-me queixar ao gerente...
- Srº Silva, chegue aqui, por favor. – Imagine, o seu empregado, o srº Bento… patatá, pataté… patatu … e (re)compôs a conversa do empregado.
O senhor Silva ouvia, atento, mas incrédulo, perplexo, a conversa da senhora marquesa… (Na verdade, ela não era marquesa, mas nós damos-lhe esse título oficial, ela merece-o.)
- A Senhora quer mesmo um garoto?! Não lhe serve um mais velho? Eu, por exemplo. Estou em muito bom estado, tirando umas entradas e uns quantos cabelos brancos… Se quer clarinho, está bem, não vou para a praia este verão.
E o srº Silva já se via a não ir para a Caparica nas férias desse ano, indo passá-las à terra, na Beira Baixa, regressando em setembro, pronto a servir, com a sua elegância habitual, a Senhora Marquesa, viúva do senhor mestre de alta cavalaria, em cima de um pedestal.
E a senhora marquesa, ao lembrar-se da estória do tal garoto, não conseguia deixar de ver o dito cujo marido, que ela dizia ter sido mestre de alta cavalaria, devidamente composto, em cima do tal pedestal. Por mais que tentasse varrer da memória tal imagem abusiva da sua honorabilidade, lá estava ele, todo garboso e muito bem enfeitado, montado no seu cavalo alazão. A memória é realmente muito traiçoeira. Porque raio de carga d’água, não sei porque associação de ideias, há - de um mestre de alta cavalaria, estar com duas bandarilhas, se não é toureiro?! Ou será que era?
Só por ela pedir um garoto clarinho?! Sabendo nós que um garoto é uma bebida de café com um pouco de leite, servida em chávena de café ou café pingado de leite, apenas com um pouco mais de leite que o habitual, para ser clarinho.
Não fazemos a menor ideia, mas era assim qua a senhora o via!
Nota:
Uma versão deste texto foi publicada no Boletim Cultural Nº 73 do Círculo Nacional D'Arte e Poesia, Ano XVI, Julho 2005.
Apesar do novo "estardalhaço" que por aí anda com mais um "caso mediático", quantos já tivémos este ano? E onde vamos parar com este descalabro todo?! Pois apesar de tudo isso vamos continuar a "postar" mais um texto sobre as aventuras da menina Odete, de "estórias que parecem mentiras". Pois, até pode parecer mentira que nos mostremos relativamente alheios ao imediatismo das notícias...
Pois! Mas este excerto também é sobre notas, notas, notas, as notas é que motivam isto tudo, tal é a ambição, a cupidez do ser humano! De alguns seres humanos, diga-se...
Notas e moedas...
F.M.C.L.
Só que a menina Odete andava, na altura, preocupada com o "destrocar a nota de cinco contos", mas também com a nota de Matemática. A ação decorreria com o aproximar do final do ano letivo, certamente.
Capítulo III
Subindo a Avenida, encontrou o professor de Matemática que descia apressado. Pasta na mão, contendo um portátil, camisa desapertada, gravata ligeiramente deslaçada, casaco aos ombros, do fato de meia estação que usava, dirigia-se ao gabinete de arquitetos onde participava, em equipa, na elaboração de projetos de construção. (Melhor, de destruição! Tipo deita abaixo “arte nova” e faz torre de vidro refletor.)
- Setôr, você é que me vai desenrascar com esta nota.
- Ah, não me venha com conversas que estou cheio de pressas. (Pressa de chegar ao gabinete para a reunião, pressa que acabe a reunião, pressa de chegar a casa, pressa de acabar o dia e ir descansar, pressa de terminar o ano e virem as férias, pressa… pressa. Pressa da pressa…) E já dei a nota que havia de dar. Não faço alterações. Tem o que merece e até tem uma nota muito boa, não me diga que ainda queria melhor! Nas provas de ingresso terá oportunidade de melhorar. Se toda a gente tivesse as suas notas!..
- Setôr, não é bem isso…
- Pois, pois… depois falamos. Já estou mais que em cima da hora da reunião. (imaginava os colegas todos em volta da mesa, prontos para reunirem e ele a entrar, mesmo em cima da hora, a pisar a hora, a pisar o risco, a pedir desculpa, faz favor de dar licença, desculpe, por favor, até chegar ao seu lugar para se sentar…) desculpe, senão vou chegar atrasado… até à próxima, adeus. Há Deus?!
Acrescentaria: Há Justiça?! Há Justiça Divina?!
Nota de rodapé:
Uma versão deste texto foi publicada no Boletim Cultural nº 82 do Círculo Nacional D'Arte e Poesia, Ano XVIII, Maio 2007