As “Alminhas” de Aldeia da Mata e “O Combate de Flor da Rosa"
“Será que as lendas têm um fundo de verdade”?
A leste da freguesia de Aldeia da Mata, concelho de Crato, existem dois monumentos peculiares e singelos, mas muito significativos, conhecidos como “As Alminhas”. Um fica mais destacado à saída da povoação, à beira da estrada nacional, na direção da sede de concelho e pela sua localização é facilmente referenciável, sempre que se entre ou saia da localidade na direção mencionada. O outro, um pouco mais recatado, encontra-se relativamente próximo do primeiro na continuação da estrada, mas na direção de Alter do Chão, antes de se chegar ao Cemitério da Aldeia, precisamente na Rua das Alminhas.
Estes monumentos que são relativamente comuns por todo o Portugal, seja nas zonas rurais ou urbanas, nas aldeias ou nas cidades têm um significado muito especial que se tem vindo a perder, mas que muitos têm escrito na respetiva estrutura: “Rezai pelas Alminhas”… “Mais do que uma forma de arte, as Alminhas nasceram com uma função: salvar e rezar às almas do purgatório.”(1)
Aos monumentos da Mata estão associadas algumas estórias ou lendas e tradições que se perderam na azáfama dos tempos modernos.
Uma das estórias que se contavam referia-se à “Unha de Boi”.
Outra estória ou lenda dizia que os dois monumentos assinalavam o local onde decorrera uma batalha ou guerra e que delimitavam o espaço onde correra o sangue derramado pelos intervenientes nessa contenda. Esta estória foi passando de geração em geração, e era-nos contada em crianças, quando por ali passávamos ou íamos festejar os “Santinhos”, no dia um de Novembro. Não sei se ainda hoje será contada às crianças de agora, nesta Aldeia globalizada …
Ao ler o livro “Guerra das Laranjas 1801”, do Professor Doutor António Ventura, integrado na coleção “Guerras e Campanhas Militares da História de Portugal”, Editora QuidNovi, 2008, deparou-se-me um capítulo muito curioso designado pelo autor como “O Combate de Flor da Rosa”.
Muito sinteticamente, esta “Guerra” resultou da invasão de Portugal, pelas tropas espanholas comandadas pelo generalíssimo D. Manoel de Godoy, através do Alentejo e ocorreu durante Maio e Junho de 1801. Esta ofensiva já se integra na designada “Guerra Peninsular”(2), precede as denominadas “Invasões Francesas” de 1807, 1809 e 1810 e foi um desastre para Portugal. (Entre outros aspetos, Portugal perdeu a soberania sobre Olivença, que nunca mais seria incorporada no Estado Português.)
Em 20/05/1801, com várias Divisões, os espanhóis iniciaram as ações militares sobre as praças de Olivença, Juromenha, Elvas e Campo Maior.
As principais cidades e vilas fronteiriças acabaram por ser ocupadas ou neutralizadas pelo exército espanhol.
Olivença e Juromenha, praças-fortes, renderam-se sem oferecerem resistência.
Elvas foi cercada, o governador não aceitou a rendição, mas esta praça-forte, considerada “a chave do reino” ficou neutralizada até final da Guerra, não tendo havido propriamente ataques em força, mas cercando-a e com pequenas ações, os espanhóis controlaram a situação, impedindo as tropas de saírem da cidade.
No dia vinte e nove de Maio, o inimigo atacou fortemente Arronches, sendo “a derrota dos portugueses rápida e completa”(3), tendo as tropas portuguesas abandonado o campo de batalha.
As tropas portuguesas estacionadas entre esta vila e Alegrete foram-se dirigindo para Portalegre.
Campo Maior, cercada desde vinte de Maio, resistiu e combateu com denodo nas condições disponíveis, sofrendo o cerco até seis de Junho, quando em conselho de guerra foi decidido aceitar a rendição, em termos honrosos. A capitulação foi assinada no dia sete, mas os defensores saíram com todas as honras militares.
A vinte e nove de Maio, houve um conselho de guerra em Portalegre, presidido pelo Duque de Lafões, que era o comandante em chefe de todas as tropas portuguesas, com o posto de marechal general. Decidiu-se a retirada do exército lusitano na direção do Tejo. De passagem, em Alpalhão, em novo conselho de guerra, decidiram concentrar o exército em Gavião, tendo acampado junto desta localidade a trinta e um de Maio.
É neste contexto de retirada do exército que se enquadra o referido “Combate” que tendo-se iniciado em Flor da Rosa se haveria de concluir junto a Aldeia da Mata.
Por ordem do Duque de Lafões e visando a recolha de abastecimentos, saíram as tropas, ao final da tarde de três de Junho, do campo do Gavião com destino a Flor da Rosa e Crato, com passagem por Tolosa e Gáfete. O comando foi entregue a D. José Carcome Lobo, que comandara as tropas portuguesas em Arronches. Constituía este corpo de tropas, 4 Companhias de Granadeiros, 2 de Caçadores, num total de 600 homens de Infantaria; 68 de Cavalaria, 40 portugueses e 28 ingleses e 4 peças de Artilharia. Eram seguidos por 70 carros, requisitados na região, alguns puxados por mulas, a maioria por bois, para o transporte das mercadorias. Segundo o comandante, chegaram a Flor da Rosa entre as dez e as onze horas do dia 4 de Junho, tendo percorrido parte do trajeto durante a noite, rompendo-lhes o dia perto de Tolosa.
No dia um de Junho, a partir de Arronches, os espanhóis marcharam em direção a Portalegre, passando por Alegrete, tomando-a sem resistência, o que aconteceu também com a cidade. No dia dois de Junho ocuparam Castelo de Vide e atacaram Marvão, que repeliu o invasor. Foram também destacadas forças para o Crato e Flor da Rosa, onde o exército português, na fuga precipitada que fora fazendo ao longo do norte do Alentejo, havia deixado provisões, indispensáveis a qualquer dos exércitos. Estas forças inimigas partiram de Portalegre, pela manhã do dia quatro de Junho, sendo seu comandante o Marechal de Campo, Marquês de Mora, comandando 2500 homens de Cavalaria e três batalhões de Infantaria.
A leitura deste trecho do livro motivou-me para consultar no Arquivo Histórico Militar, no Museu Militar, em Lisboa, o documento relatando o ocorrido neste combate.
Mas deixemos o próprio comandante das tropas portuguesas, coronel D. José Carcome Lobo, narrar os acontecimentos:
“… pela uma para as duas horas da tarde, deram parte as Vedetas e avançadas de vir o inimigo pelo lado de Portalegre, fiz imediatamente pegar em armas a toda a tropa… coloquei duas bocas de fogo em lugar próprio de bater o inimigo de frente logo que chegasse ao alcance… destaquei duas Companhias de Caçadores… para vir ganhando pelos lados os flancos do inimigo… ordenando também aos 40 Cavaleiros portugueses e 28 Dragões ingleses que sustentassem cada um destes partidos…
Adiantou-se o inimigo e principiou a Artilharia a jogar sobre ele… porém a Cavalaria tanto inglesa como portuguesa fugiu a toda a brida, atropelando não só a Infantaria, mas até a minha própria pessoa e então expostas, sem nenhum apoio, as Companhias de Caçadores fizeram quanto puderam e mesmo perdendo muita gente que lhe foi morta e ferida… se vieram retirando… atirando sempre sobre o inimigo… fomos seguindo a nossa retirada com muito trabalho por causa da Cavalaria que nos seguia sobre quem fizemos fogo; porém enfraquecendo cada vez mais não só pela gente que íamos perdendo ferida e morta, mas pelos muitos que se iam extraviando e fugindo e, nesta ordem de aperto, aproveitando todo o lugar pedregoso que mais nos pusesse ao abrigo da Cavalaria inimiga, vencemos légua e meia de terreno até Aldeia da Mata, aonde encontrando um pequeno bosque com um pequeno muro de pedra solta fiz entrar a Infantaria que me restasse e guarnecer o mesmo muro, tomando-o como parapeito… aonde nos defendemos, fazendo fogo sobre o inimigo por espaço de duas horas. (…)
Acabadas todas as nossas munições e ameaçados de ser passados a espada e atacados por todos os lados e até com a Artilharia adiante de nós, pronta a bater o bosque, eu capitulei a condição de bom trato à Tropa…”(4)
Este excerto faz parte de “Narração fiel e detalhada do Combate do dia 4 de Junho, entre as Tropas Portuguezas comandadas pelo Coronel D. Jozé Carcome Lobo, e Hespanholas pelo Marechal de Campo o Marquez de Mora junto a Vila de Flor da Roza. 1801” - Arquivo Histórico Militar – 1ª Divisão – 12ª Secção – Caixa nº 3 – nº 19.
E voltando à questão inicial, se as lendas têm um fundo de verdade, verifica-se, neste caso, haver correlação entre o relato de tradição oral, parcialmente sobre a forma lendária e a ocorrência factual dum combate no local referenciado. Combate que tendo-se iniciado em Flor da Rosa teve o seu epílogo à entrada de Aldeia da Mata.
Paralelamente ao desenrolar das operações de guerra, decorriam conversações para assinatura da Paz que seria datada de seis de Junho, pelo “Tratado de Badajoz”.
P.S. – Já após ter delineado este texto, tive a oportunidade de ler alguns excertos do livro “a nossa terra” do “senhor João”, João Guerreiro da Purificação, constante na bibliografia consultada. Na pág. 218, ao escrever sobre “As Alminhas Novas”, refere também a hipótese de que elas possam estar relacionadas com o combate supra mencionado. Recomendo vivamente a leitura deste livro, bem como das outras fontes referenciadas.
Vários outros documentos, inclusive espanhóis, referem a ocorrência deste combate, junto a Aldeia da Mata, de acordo com citações de alguns dos autores mencionados na Bibliografia. Tal ocorrência é pois um facto histórico comprovado.
Quanto à evocação deste “Combate” através das “Alminhas” pois que outra “guerra” e outro “combate” senão o referido, poderão evocar os mencionados monumentos singelos e peculiares?
Aliás essa evocação de acontecimentos trágicos, sejam eles de natureza individual ou coletiva, é uma das características das “Alminhas” espalhadas por todo o país, com especial incidência a Norte.
Curioso que, no Porto, na Ribeira, exista também um painel de “Alminhas”, permanentemente iluminado, junto à Ponte D. Luís, evocando um acontecimento trágico aí ocorrido durante a designada 2ª Invasão Francesa, quando a população da cidade, em fuga face à aproximação dos exércitos de Soult, em 1809, tentou atravessar o Rio Douro na designada “Ponte das Barcas”, que ruiu devido ao excesso de peso, tendo morrido milhares de pessoas. “Desastre da Ponte das Barcas” é assim conhecido.
Interessante a proximidade histórica destes dois acontecimentos: “Combate de Flor da Rosa”, 1801; “Desastre da Ponte das Barcas”, 1809. Ambos os acontecimentos integrados na designada “Guerra Peninsular”.
BIBLIOGRAFIA
- Arquivo Histórico Militar – 1ª Divisão – 12ª Secção – Caixa nº 3 – nº 19.
“Narração fiel e detalhada do Combate do dia 4 de Junho, entre as Tropas Portuguezas comandadas pelo Coronel D. Jozé Carcome Lobo, e Hespanholas pelo Marechal de Campo o Marquez de Mora junto a Vila de Flor da Roza. 1801.”(4)
- NATÁRIO, Rui; As Grandes Batalhas da História de Portugal; 1ª edição, Barcarena, Marcador Editora, Março 2013.
- OLIVEIRA MARQUES, A. H.; História de Portugal, Vol II – Do Renascimento às Revoluções Liberais; 13ª edição, Lisboa, Editorial Presença, Jan. 1998.
- PURIFICAÇÃO, João Guerreiro da; A nossa terra;1ª edição, Lisboa; Há Cultura. Criação e Produção de Eventos Culturais, Lda / Associação de Amizade à Infância e Terceira Idade de Aldeia da Mata, 2000.
- RAMOS, R. et.al.; História de Portugal; 4ª edição, Lisboa, A Esfera dos Livros, Fev. 2010.
- VENTURA, António; Guerras e Campanhas Militares da História de Portugal, Guerra das Laranjas, 1801; 1ª edição, Lisboa, QuidNovi, 2008. (3)
- VENTURA, António; O Combate de Flor da Rosa – Conflito Luso-Espanhol de 1801; Lisboa, Edições Colibri, Junho 1996.
- VICENTE, António Pedro; Guerras e Campanhas Militares da História de Portugal, Guerra Peninsular 1801 / 1814; 1ª edição, Lisboa, QuidNovi, 2007. (2)
WEBGRAFIA
RODRIGUES, Olinda Maria de Jesus; As Alminhas em Portugal e a Devolução da Memória, Estudo Recuperação e Conservação – Tese de Mestrado em Arte, Património e Teoria do Restauro. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010. (1)
Wikipédia – Enciclopédia Livre - http://pt.wikipédia.org.
http://www.arqnet.pt/exercito/laranja4.html
Versões deste texto foram publicadas em:
Jornal “A Mensagem” nº 475, Janeiro 2014
Boletim Cultural nº 114 do Círculo Nacional D’Arte e Poesia, Fev. 2014