Diálogo através duma Máquina Fotográfica...
Diálogo através duma máquina fotográfica
A luz... e os olhos
A luz, ferindo a vista, reflecte-se das paredes brancas, brancas paredes, cortadas pelos rodapés azul-ferrete, amarelo-ocre, castanho-grená, cinza, branco simples e totalmente.
E a luz sempre. Forte, intensa, traz-nos semi-cerrando os olhos.
Nas ruas, calçada irregular e gasta de solas, ferraduras, rodas ferradas, pés descalços e agora a borracha que nela também se gasta, não há vivalma.
À porta, a uma porta, uma velha, viúva, assomando-se.
De preto vestida, como se toda a luz que se espraia das casas, dumas frontarias para as outras, a ela esteja destinada. A luz e o calor que o preto absorve inteiramente.
A cara e o pescoço (do corpo não aparece mais nada, excepto as mãos) são uma paisagem gretada de rios, vales profundos e secos da erosão do tempo, pele escura de muitos sóis e luas, de marés nunca vistas, que o mar fica muito além do horizonte, perdendo-se a vista no azul, fusão de céu e terra. Terra, que nem no mar, sentindo periodicamente os efeitos da lua, das luas, da sua força gravitacional, expelidora e contractora.
Ganhando confiança, saiu da soleira da porta, pareceu amanhar as flores num canteiro de pedras sobrepostas, encostado à parede da frontaria, com uns craveiros, begónias, manjericos, tudo tapado por uma rede de capoeira. Para as vacas não comerem quando, à tarde, regressam do campo para a ordenha no estábulo.
Fez-se à fotografia. Compôs um sorriso, o melhor que pôde, numa boca descarnada, há muito sem dentes. Perdidos que foram nos toucinhos, pão, sardinhas, fio de azeite, azeitonas, café de borras, higiene dentária desconhecida de pepsodentes branqueantes e idas ao dentista.
Arranjou o lenço preto na cabeça, escondendo uns fios de brancos que assomavam sobre a testa e as orelhas. Ajeitou a blusa e a saia, ainda se interrogou, olhando, se havia de tirar o avental. Deixou-o ficar. Encostou-se à soleira, soergueu o peito, que terá tido seios firmes, embora não sabendo nunca o que é ‘soutien’, mas terá sabido de mãos carinhosas, calosas embora, mas carentes de desejos, percorrendo montes e vales, após largarem a rabicha do arado por vales e montes.
Instintivamente pousou as mãos sobre o baixo-ventre uma a segurar a outra. Que isto das mãos a gente nunca sabe o que lhes fazer nestas coisas. E as mãos fazem cada coisa e tanta cousa! Sòmente paradas não sabem estar.
E só agora reparo nos olhos! Pretos, expressão de moiras que ficaram perdidas na planura. Sem sombras. Que não há sombras a esta hora, nem nestas horas. Estão apenas suspensas dos telhados de canudo, a meio caminho do chão, nas duas frontarias. Que o sol está entre cá e lá, no trajecto de todos os dias, no ponto mais alto do dia, a meio.
E ficamos nos olhos, cheios de vida, brilhantes de entrega, para uma foto ao meio dia, numa rua antiga duma Aldeia, perdida na planície.
Notas (incompletas) sobre o Texto:
Neste texto mantem-se a ortografia usada quando foi escrito, na década de 80.
Está publicado em Boletim Cultural Nº 17 do CNAP - Círculo Nacional D'Arte e Poesia, Julho 1992.
Foi premiado em dois Jogos Florais:
- 2º Prémio nos 2ºs Jogos Florais da “Alma Alentejana”, Almada, 2002.
- 1º Prémio em Jogos Florais de Associação de Amigos de Montargil.