“Festa do Cinema Italiano” – “8 e ½”
Filme de Frederico Fellini
(Fórum Romeu Correia - Almada)
- 29/06/16 -
Um realizador de cinema em crise de identidade artística e pessoal vai passar umas férias para umas termas.
Aí, é permanentemente “assaltado/atormentado” pelos seus fantasmas e fantasias profissionais e da sua vida privada. De tal modo que o previsto descanso se tornou num pesadelo.
A obsessão por criar um filme atormentava-o, na pessoa de todos os intervenientes em filmografias anteriores.
Produtores apresentando orçamentos, planos de produção, financiamentos.
Que dinheiro havia.
Atrizes exigindo atribuição de papéis e personagens pedindo textos, falas e noção do enredo. Críticos questionando as poucas ideias que iam saindo da mente do criador e, este, em crise criativa.
Sem roteiro, sem ideias para o filme, sem enredo, sem texto, sem definição de papéis, sem falas para as personagens, sem uma narrativa consistente, sem um guião orientador. Angústia suprema de um criador: a ausência de ideias!
O projetado descanso tornou-se num frenesim criativo, entre o real, dos utentes das termas, desfilando por um copo de água miraculosa, da chegada da amante, seguida da mulher e amiga; e o imaginário de todos os envolvidos no processo criativo na construção de um filme.
Neste, de Federico Fellini, um dos grandes mestres do Cinema, de quando a cinematografia europeia ombreava, sob todos os aspetos, com a americana; nesta película passam e perpassam as particularidades do Mestre, projetadas nas do realizador, ator no filme, personificado pelo ícone, Marcello Mastroianni, seu alter ego.
Filme a preto e branco, fantasiando e misturando a realidade e a ficção, na cabeça do ator/realizador, Guido Anselmi. Fantasmas imaginários (?) do subconsciente e pessoas reais.
A omnipresença das Mulheres: a mãe, a mulher, a amante, as atrizes dos filmes, a prostituta desencabelada do tugúrio da praia; a mulher ideal, personificada pela jovem, recatada e bela, Claudia Cardinali.
A relevância da censura, nomeadamente a religiosa, capaz de coartar a construção duma narrativa, da exposição de uma ideia, da apresentação de uma imagem, um corpo ou pose mais ousada de mulher, a presença e personificação do demónio.
A autocensura, fruto da educação de sotaina em instituição sacerdotal, (seminário? ou colégio de padres?). O castigo e suplício desmesurado, face ao desvirginar do olhar, perante a dança da prostituta, a troco de umas míseras moedas, arrebanhadas por crianças, à procura da sua iniciação sexual.
Todas estas imagens de um passado infantil, de uma educação castradora, recalcada no subconsciente, afloram na mente adulta do realizador Guido, constrangendo e tolhendo o ato criativo.
E todas estas dúvidas, perplexidades, hesitações, frustrações, reais e ficcionadas, constroem o próprio filme, na cabeça do realizador Guido e no projeto do Mestre Frederico.
E a cenografia sempre lá esteve à espera, os andaimes e as estruturas do derradeiro filme sempre lá estiveram, aguardando a redenção criadora de um guião, um roteiro, um enredo.
A construção megalómana e grandiosa do último filme ou de um próximo futuro (?), uma nave espacial em que no final desfilarão todos os personagens, atrizes, na maioria, que, durante o descanso ou devaneio (?) nas termas, foram atormentando o cineasta com as sua dúvidas, interrogações, formulação de desejos e pedidos.
E é vê-lo, o realizador Guido, projeção de Frederico, de megafone em punho, dirigindo todos aqueles atores e personagens reais, naquele desfile de loucos ou de crianças crescidas (?), nos passadiços da geringonça construída, ao som de uma mini orquestra de saltimbancos, tão ao gosto e saber de Fellini.
É um momento sublime e redentor! Verdadeiramente felliniano.
E a música de Nino Rota, outro ícone dos projetos fellinianos.
Filme datado?!
Não sei. Só sei que o filme tem que ser visualizado e usufruído atendendo ao seu aspeto formal e estético, contextualizado à época em que foi realizado. Ao enquadramento ideológico e político desses anos. Itália ainda do pós guerra, recuperando economicamente, com profundas assimetrias de desenvolvimento, em múltiplos fatores: sociais, regionais, económicos. Início dos anos sessenta do século XX, numa Itália governada pela Democracia Cristã, governos instáveis, com a oposição de um Partido Comunista forte e a omnipresença fortíssima da Igreja Católica.
Há situações que hoje nos parecerão talvez bizarrias. As discussões bizantinas com o intelectual hipercrítico, sobre a essência do filme, do papel do cineasta, da mensagem correta ou deturpada do texto, da função e móbil do cinema e da arte, talvez nos pareçam, atualmente, despropositadas e maçadoras, mas faziam parte da problemática ideológica, filosófica e estética, da época e do questionar do papel do Cinema enquanto Arte, ao serviço ou não de uma sociedade, e de uma classe social, ou não.
Há excertos do filme que se nos tornarão aborrecidos. Talvez.
Constatei que vários espetadores não regressaram do intervalo!
E esta análise não corresponde exatamente ao paradigma do que habitualmente é escrito sobre o filme?!
Foge aos cânones do consagrado e consignado sobre ele?!
Não?
Alguma da essência do filme nela perpassará... Atrevo-me eu.
“Que presunção e água benta...”
Caso assim não seja e eu tenha desvirtuado a mensagem do filme, que o Mestre Frederico me perdoe!