INTERSECÇÕES
Decepados os sexos, cortadas as mãos
Desfigurados os rostos
Mutiladas…
Imóveis!
Erguiam-se as estátuas
À beira das estradas.
Intersetando a imagem
Cruzando o recorte das estátuas,
Velozes…
Corriam os automóveis
Imagens fugidias, impressivas,
De movimento feito tela
Sobre que arremessadas foram
tintas.
A Memória do Tempo: as estátuas
E um tempo construindo sua memória:
- os automóveis. Auto Móveis.
Movimento opondo-se à Imobilidade.
Dois objetos se contrapondo num terceiro: o televisor.
No qual a memória foge
Como no real, em écran desfocado, redutor.
Algum dia sendo, num futuro…
Três objetos carregados de Memória
entretanto perdida
Significantes do Tempo que, passado,
Unirá uma vez mais três objetos.
Destituídos da sua condição de uso
Desprovidos de utilidade.
Expostos Algures… ou abandonados
À Indiferença dos passantes
Nesta via, vida, sem finito.
Escrito em 1988.
Publicado no Boletim Cultural Nº 59, Ano XII, do Círculo Nacional D’Arte e Poesia, Maio 2001.
Numa Cidade sem Tempo
Com(Templo)!
Contemplo o branco!
Sempre a brancura das paredes a povoar-nos a Memória.
Ressequida a paisagem: tons castanho, creme, ocres, amarelos
De quando em vez, uns verdes (lapsos de pintor)
Vermelhos (lembranças de lutas, de conquistas, violências).
Transversais barras riscam o branco da monocromia:
- Margens dum espaço de rodapé colorido.
E o horizonte… a perder de vista!
Sem limite, a terra nos marca o Destino
Nos espraia sem (ha)ver praia.
É ponto de partida e de chegada.
Por aqui ficaram muitos Povos
Perderam-se nas searas, na terra fértil.
E sendo perecíveis as sementes, morrendo e nascendo cada ano…
Quiseram intemporizar-se nas paredes, nas pedras que ergueram.
Cantaram hinos em mármores e granitos!
Que o Pão nos sustenta, mas todos-os-dias
Se come, se dorme e… se morre um pouco.
Levantaram-se colunas, menhires erguidos proclamaram
Louvores à Fertilidade, à Deusa – Terra (Mãe – Fecunda)!
E ao Homem, agente transformador (Fecundante!)
E Templos e Igrejas, aos Deuses
Sublimação dos homens, cristalização dos Ideais. Apenas!
Que os Deuses nunca existiram, Além da Imaginação
Dos Homens.
Nem sem ela, o Céu e o Olimpo.
Ficaram as folhas de acanto, petrificadas, nos capitéis coríntios.
Em linguagem marmorificada, dizem-nos:
“ – Antes de os homens existirem à face da Terra
Mesmo antes de a terra o ser
Já nós éramos.
Éramos muito antes do Antes.
Somos muito antes mesmo de serem o que são, as folhas que somos.
Muito antes das Plantas.
Existimos muito antes de nos chamarem o que nos chamam.
Só muito Depois vieram os homens.
E vieram muitos e depois muitos mais por nós passaram, até que nos chamassem.
Pedras nos chamaram, calhaus, pedregulhos, pedra rija e outros nomes…
Que esquecemos.
Até que nos dignificaram, chamando-nos mármores.
E Sempre por nós passaram, por muitos e muitos Tempos, os Elementos em nós
Permanecendo imutáveis. Intemporais.
Até que há pouquíssimo tempo passaram uns Homens, de certeza dados à Poesia
Que em nós viram plantas, flores ou somente eles próprios, ou partes suas
Ou as suas partes sublimadas.
E, sendo eles mortais, temporais como as plantas
Quiseram simplesmente eternizar-se, eternizando-se, transformando-se-nos.
E, eis-nos contemplando a Cidade dos Homens, deste alto, infinitamente intemporais
Marcando num curto espaço das nossas vidas, como Pedras, a precaridade da vida dos homens
De número tão infinitos, mas tão finitos de Tempo.
E os homens, mesmo os que Homens foram, continuaram passando.
Chegados e partidos!
E nós aqui estamos em capitéis coríntios, sobre colunas graníticas
Formando o Templo.
Sustentando o Céu, que sobre nós se ergue!”
E, nesta cidade crescida das lavouras
Do rasgar do ventre criador pelos arados
Dos campos ondulantes de trigais
(Ilusão de mares balouçados pelos ventos)
Lembra-me outra cidade… minguada de terras
Sem arados nem trigais, mas com excesso de águas
Navegando na laguna, transbordando por ciclos.
Afundando-se no berço em que nasceu e prosperou.
(Nos Lóios, em painéis de azulejos
Essa arte sublime de portugueses
Corre a vida de Lourenço
Patriarca – santo de Veneza.)
Contraste com esta cidade que contemplo
Sempre minguada de águas e terras a perder de vista.
Em ambas, a marca do tempo nos lembra
A precaridade da Existência.
Se uma se afunda lentamente
O mar fazendo ondas no chão da Catedral
A corrosão do ar salgado leprosando os calcários…
Nesta, não falarei de monumentos construídos, destruídos, reconstruídos…
Lembrarei somente esse macabro achado:
Revestida de ossos, a Capela assim chamada
Nos situa no presente – futuro que recalcamos.
E que dizer das praças?!
Nas mais belas praças, lugar de Homens
O sol num céu azul
A luz ferindo a vista
Reflete-se do branco das paredes…
No centro, gotejando, a água das fontes
Corre pura e cristalina.
Se na do Geraldo a fonte, de perfeita
“Bien merece ser coronada”.
Na de Moura, um globo, o Mundo
Distribui com parcimónia a água
Pelos quatro pontos cardeais.
E por que corrermos mais
Se nesta cidade se resume
A nossa condição maior de Portugueses
O nosso orgulho de Humanidade?
Nesta cidade com Templo
De colunas e capitéis coríntios
Não sustentando teto ou abóboda
Erguido apenas ao Sol e à Lua
Coberto de manto azul durante o dia
Ou céu estrelado pela noite…
(Exceto quando chove ou está Encoberto
Que nestas pequenas cousas reside
A nossa condição de humanos.
E, nas pequenas coisas do dia-a-dia
Também há muita Poesia!)
… Nesta Cidade, dizia…
Ficamos contemplando o Templo
Desenhado sobre fundo branco
E Céu azul.
Esquecido o tempo.
Nesta Cidade sem Tempo!
Escrito em 1987.
Publicado em “Poiesis ” – Volume VIII, Editorial Minerva, Dez. 2002.