Ladra! Ladra! Ladrona!
E vamos continuar com as “estórias que parecem mentiras”, finalizando com o capítulo VI. Lembramos que foram escritas na década de oitenta do século XX e qualquer semelhança com a realidade será pura coincidência. São estórias de um absoluto “nonsense”.
Capítulo VI
Mal chegou à feira, apercebeu-se que reinava grande confusão no arraial.
- Gatuna, ladrona!... Ladra, ladra… ladra…
- Mesmo agora aqui cheguei e já me chamam ladra?! Questionou-se Odete. Com tantos ladrões que por aí andam à solta, logo a mim é que me havia de calhar…
Mas não! O coro de vozes que ecoava das feirantes dirigia-se a uma mulher de tez clara, cabelo aloirado, magra, alta, vestida de forma discreta. Misturava-se com a vozearia das vendedeiras de vestuário, de toda a espécie, imitações ou restos defeituosos das marcas da moda, de calçado e bijuterias; pregões dos vendedores de fruta e artesanato, mercadores de queijos e enchidos…
A mulher de meia-idade, enxuta, sem pinga de sangue nas faces, mal falando, estava rodeada dum pequeno grupo de velhas, trajadas de negro, quais bruxas de Goya, todas iguais na acusação e de um vendedor, pança proeminente, bigodaças, também de dedo em riste e gestos teatrais.
- Ela não pagou, não pagou!.. Gritavam as velhas, gesticulando muito, misturando a gritaria histérica, com impropérios, blasfémias, fazendo grande alarido e apontando para a ré e já condenada, no meio delas.
- Então, não paguei?! Ripostava encolhida, a mulher. – Paguei sim, paguei a este senhor. Dois contos. (Seriam agora dez euros.)
- Não pagou nada! Disse o bigodaças, enquanto lhe tirava do cesto, a blusa que ela levava.
- Ladra, ladra… ladra… repercutiu-se a algazarra pela feira.
A mulher, tremendo, deixou que lhe tirassem o artigo e a enxovalhassem em público. Continuou a tremer, cada vez mais, parecia ir entrar em convulsão.
E tantos a mandaram ladrar, com gritos de todo o lado, que ouviu-se mesmo ladrar. Primeiro aparentava uma cadelinha mansa…béu, béu… enquanto fazia os movimentos com a cabeça e o corpo e as mãos e a coluna iam assumindo uma certa horizontalidade.
Tornou-se mais interessante o ajuntamento. Muitos começaram a rir, a chafurdar com as palavras, a atiçar. Algumas até largaram as bancas para presenciarem melhor o espetáculo.
Mas o latido manso foi desaparecendo, substituído por um ladrar forte, acompanhado de rosnar e grunhidos: ão, ão, ão, grruumm, grruuummm… enquanto o corpo assumia claramente a posição horizontal, mãos assentes no chão, movendo a cabeça disforme, para todos os lados. As vestes rasgaram-se e no corpo nasciam pêlos, sempre mais eriçados e unhas grandes nas patas. Da boca espumava saliva avermelhada e os dentes caninos, presas bem salientes, arreganhavam-se para as pessoas, sobre as quais se lançava.
Estas, do espanto e risadas iniciais, passaram ao medo, ao medo visceral, ao medo ancestral dos lobos e lobisomens.
Já debandavam pela Praça, saltando e derrubando bancadas, que as vendedoras procuravam recolher e fugir, aterrorizadas, pelo monstro que ali surgira: uma cadela enfeitiçada, cada vez mais eriçada e feroz.
Crianças choravam em altos berros, mães aflitas agarravam-nas pela cintura, umas tropeçavam e caíam, sobre estas pessoas passavam, tomates misturavam-se com cruzetas, estas com sapatos, no meio de calças e camisolas, cestos de vime e plásticos com couves e alfaces.
E, no espaço do que fora o mercado, subitamente livre de gente, que se afastara para a periferia, uma salganhada de objetos… uma barafunda de artigos de todo o género… bancas e cadeiras, frutas e hortaliças.
No meio estava a mulher, enxuta de faces e seca de carnes, branca de natureza e alva da convulsão, espantada, olhando toda aquela confusão, como se houvera um tsunami, aquele alarido subitamente desfeito, toda a babel de objetos desconectados em seu redor.
Também muda de espanto, Odete, especada, não sabia o que dizer.
- O que se passou com esta gente toda?! Enlouqueceram de repente?!... Picou-lhes a mosca? E sacudiu um mosquito que a picara, enquanto fazia estas perguntas, dirigindo-se à senhora que também não soube responder-lhe.
Desceram ambas a Avenida. A senhora apanhou um táxi, Odete o autocarro, de regresso, ainda incrédula sobre o que os seus olhos haviam presenciado.
Entretanto, as pessoas foram regressando à Praça, pouco a pouco, refazendo-se do susto ou alucinação coletiva.
Odete questionava-se sobre quem teria razão. Onde estaria o ladrão ou ladrona? Quem teria roubado? E que alucinação fora aquela? E o que teria ela ido fazer à feira, se não comprara nada e já destrocara a nota?!
Serão cenas de próximas estórias?
Quem sabe, num futuro já sem escudos nem contos, mas com euros?!
Nota:
Uma versão deste texto foi publicada no Boletim Cultural Nº 78, do Círculo Nacional D’Arte e Poesia, ano XVII, Junho 2006.